Conto - Velhas cicatrizes

Adam se sentia estranho. Acordou como de praxe: sonolento, cansado e com vontade de um bom café. Mas alguma coisa parecia diferente. Sentia-se mais... preguiçoso.
Espreguiçou-se com os olhos fechados, espalhando- se na cama. Quando os abriu, contudo, não pode acreditar no que via. Será que ainda estava sonhando, como naqueles sonhos duplos?
Seus braços estavam rechonchudos de novo, iguais a quando ainda não fazia academia. Suas pernas estavam menores, não em largura, mas sim em... comprimento? Estava mais baixo?
Levantou-se num pulo, atônito e confuso, sem fazer a menor ideia do que ocorria. Quando se olhou no espelho, a surpresa foi ainda maior: a imagem refletida não era a sua, mas sim daquele garoto de dezesseis anos, o velho e adolescente Adam.
“Que diabos?!”
Não demorou muito para sua mãe surgir na porta, apressando-o de forma enérgica:
— Vamos, Adam! Está atrasado! Nem se vestiu ainda? Não vou mais te dar carona se você continuar a me atrasar todos os dias!
Adam arregalou os olhos, contemplando a aparência ainda jovem da mãe. Como havia mudado nesses dez anos! E que estranho era vê-la dessa forma, como se o tempo tivesse enlouquecido e ele já tivesse perdido qualquer resquício de racionalidade.
Obedeceu calado, vestindo o uniforme com agilidade, enfiando algumas bisnaguinhas recheadas com requeijão na boca e jogando a mochila nas costas. Ah, aquela mochila! Há quanto tempo não a via... Tocou os cadernos, o estojo, a calculadora. Seu dedo sensibilizou-se ao toque áspero, parecia tão real como qualquer coisa normal do dia a dia. Dessa forma, jamais saberia se era ou não um sonho.
Em poucos minutos desceu do carro da mãe, em frente à Escola Estadual Aluísio Azevedo. O imponente prédio cinza, com aspecto de abandono mesclado à filme de terror, com todas suas pichações de mau gosto, sua sujeira e frieza. Continuava não sendo nem um pouco convidativo.
“Esse maldito colégio de novo”, sibilou entre dentes. Sem alternativas, desferiu um beijo na bochecha da mãe e dirigiu-se a prisão disfarçada. Quem visse Adam de fora, contudo, notava nítidas diferenças se comparadas ao mesmo Adam que adentrara a escola no dia anterior: suas passadas eram firmes, sua postura era rígida e inflexível. Não havia sinais de medo, apenas de certo desconforto. Como alguém que acabara de chupar uma fruta azeda demais.


***
Adam Wolf é empresário. Formou-se em Administração de Empresas e, atualmente, cursa MBA em Marketing. Ele é um jovem atraente de 26 anos, possui o corpo malhado, olhos verdes e expressões suaves e harmônicas em seu rosto. Fez muito sucesso com as mulheres na época da faculdade, mas agora pertence somente a Lavínia Moraes, sua noiva: loira, altura mediana, corpo igualmente malhado e sorriso que já cativou muitos corações.
Adam é um profissional bem sucedido, com um carro da moda, uma noiva linda e uma história marcada por suor, luta e fé. Se sempre foi assim?
Definitivamente, não.
Há dez anos, Adam era apenas um garoto de dezesseis anos acima do peso, abaixo da estatura, com acne no rosto e aparelho nos dentes. Totalmente introspectivo, raramente fazia amigos, dedicando todo seu tempo na escola para estudar. Sofria bullying das 7h às 12h de segunda à sexta-feira na escola pública onde estudava. Tímido demais era um alvo fácil: jamais revidava.
Passado a adolescência, o rapaz, já transformado em homem, aprendeu a não levar desaforo para casa. Intimidava seus intimidadores, retrucava as palavras tortas e até ameaçava, se fosse necessário. Era dono de si próprio, de suas escolhas, de seu modo de agir, pensar e falar. Não se importava mais com a opinião alheia, em agradar ou não as outras pessoas. Era apenas ele mesmo e não precisava provar isso para ninguém.
Mas desejava ter sido essa pessoa antes. Antes das brigas na escola, da vergonha, da humilhação.
“Seu desejo é uma ordem”, alguém disse, em algum lugar...

***

A princípio, o rapaz pensou que se perderia facilmente no colégio, afinal, passaram-se dez anos desde a última vez em que estivera lá. Contudo, encaminhou-se à sala certa quase no modo automático, fitando com tédio as paredes descascadas e os pirralhos que cruzavam o caminho ao seu redor. Haveria paciência suficiente para isso?
Entrando na sala, reconheceu com amargura alguns rostos que o encaravam. Patrick e Henrique. A dupla que mais o havia humilhado no colégio, desde piadinhas sem graça, ofensas contra sua aparência, socos, empurrões e cotoveladas aleatórias... Fuzilou-os com um único olhar.
Era aula de história, uma aula que particularmente Adam sempre odiara. O professor mosca morta fingia não ver as ofensas que ocorriam na sala, as agressões, o preconceito. O bullying era totalmente ignorado pelo professor que passava a aula toda de costas para os alunos, escrevendo intermináveis textos na lousa. Agora, contudo, entendia: ele também tinha medo. Ignorava o bullying e, desta forma, ficava imune às ofensas alheias. Tática boa. Boa para um perdedor.
— Professor, não enxergo a lousa, tem um bujão na minha frente  ̶  disparou Patrick, rindo alto e incitando os demais alunos a rirem também, afinal, quem não risse...
O professor fingiu não ouvir.
— Agora já sei quem acaba sempre com o chocolate da cantina! Ha ha ha, será que ainda tem um pouco preso nos seus dentes metálicos, Adam?
— O chocolate não vai te deixar menos burro, meu chapa  ̶  o garoto revidou.
— Oloooooco!  ̶ Henrique zombava do próprio amigo, explodindo em gargalhadas exageradas. Alguns alunos o acompanhavam, temendo também virarem vítimas se não agradassem aos dois.
— Tá louco, cabeça de ferro? Não adianta fugir pra mamãe hoje na saída não, se não a velha vai levar um cacete junto  ̶  ameaçou Patrick, enfurecido.
O professor continuava fingindo-se de morto.
— Vamos ver quem é que vai sair correndo implorando pela mamãe  ̶  Adam respondeu, fazendo a sala toda explodir em gritos de espanto, risadas e batidas frenéticas na mesa.
— Briga! Briga! Briga!  ̶  alguns já incitavam.
— Já chega!  ̶  finalmente esbravejou o professor. — Resolvam isso fora da sala de aula!
Uma veia pulsava na testa de Adam. A veia da vingança. Havia desaprendido a receber desaforos, seus punhos já estavam cerrados, ansiando pelo momento de fazer sua juventude valer a pena. Se vingar. Mostrar quem realmente era. Colocar aquelas pessoas no seu devido lugar.
Os minutos que se arrastaram até o horário de saída pareciam intermináveis. Adam suava frio enquanto anotava as baboseiras do professor, seu ódio pulsando. Patrick e Henrique o encaravam do outro lado da sala, com ar intimidador que não o intimidava nem um pouco, pelo contrário, lhe dava ainda mais vontade de arrebentá-los.
Dois fracotes, isso o que eram. Dois garotos mal amados que desejavam a qualquer custo atenção, atenção que jamais receberam de seus pais. À custa dos outros, tentavam inflar seus egos podres, desejando preencher um vazio que jamais seria preenchido. Não mais à custa de Adam. Não mais à custa de nenhum aluno daquela escola.
Quando a aula enfim terminou, Adam já havia avisado sua mãe que sairia mais tarde, inventando uma desculpa qualquer. A caminhada até o portão de saída do colégio parecia uma marcha fúnebre, todos seguiam em prontidão, alguns ansiosos para ver a briga, outros lamentando pela atitude de Adam. Certamente perderia, provavelmente teria um braço ou uma perna quebrada... Coitado, não era um mau garoto afinal!
Patrick e Henrique seguiam confiantes, com egos inflados demais para imaginarem que Adam agora é lutador de Muay Thai. Foi uma das primeiras coisas que fez ao alcançar a maioridade: lutar. Aprendeu técnicas de luta, de defesa e de vida que contribuíram muito para transformá-lo no novo homem.
Adolescentes na rua, rodinha formada: “briga, briga, briga!”, berrava os garotos ao redor, eufóricos. Patrick e Henrique riam. Adam posicionava a guarda. Antes mesmo que os garotos pudessem ver, o rapaz desferiu os mais variados golpes: jab, direto, cruzado, upper, todos atingindo em cheio o rosto dos oponentes. O rosto, o tronco, o abdome... Os garotos choraram como bebês.
Quando Adam terminou, a plateia o olhava incrédula. Mais que isso: o admiravam. Essa era a liberdade! A alforria! O fim da ditadura do bullying! Eles finalmente estavam a salvos para serem eles mesmos!
Contudo, ao contrário do que imaginava, a vitória não satisfez Adam. Não estava feliz. Ainda era a vítima. Tornara-se o que se tornou graças às ofensas dos outros alunos. Graças à humilhação. Graças à dor. A vingança não acabava com tudo, apenas amenizava uma pequena parte de suas memórias. O passado não iria voltar, não importava em quantos praticantes de bullying batesse. Precisaria de muito mais que isso.
As cicatrizes continuaram nele mesmo quando tornou a acordar com 26 anos...

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Criado por: Andréa Bistafa.
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